O musical Priscilla, Rainha do
Deserto, em cartaz no Teatro Bradesco, em São Paulo, é pura festa; uma
explosão de cores, ritmos e músicas muito conhecidas do mundo pop.
Assim
que foram anunciadas as audições, surgiu a enorme curiosidade para saber quem
daria vida às três famosas drag queens do cinema. Os testes foram
concorridíssimos: atores, cantores e bailarinos, todos usando sapatos de salto
alto; e de cada grupo de 20 pessoas, apenas um ou dois voltavam para o callback. Os
diretores originais australianos e a produção brasileira abriram mão de alguns
famosos que se candidataram às vagas e decidiram escolher grandes atores e
cantores para o espetáculo (diferentemente de outras produções atuais). E o
resultado está lá: um elenco brilhante que todas as noites faz a plateia
vibrar.
As Aventuras de Priscilla, a Rainha do
Deserto é um filme australiano de 1994 escrito e dirigido por
Stephan Elliott. A história gira em torno da viagem de três
drag queens que atravessam o deserto de Sidney até Alice Springs, num ônibus que
eles ironicamente batizam de “Priscilla”. A história do musical é basicamente a
mesma do filme: Mitzi (Luciano Andrey) quer ir até
Alice Springs visitar seu filho e fazer suas performances no hotel que pertence
a sua ex-mulher (Naíma); e para isso convida suas duas “amigas”
drag queens, Bernadette (Ruben Gabira) e
Felícia (André Torquato). Na estrada, eles conhecem
algumas pessoas pelo caminho e dividem suas intimidades, fazendo com que os
laços de amizade entre eles se estreitem e assim vivam grandes aventuras.
Na época em que foi lançado, o filme ajudou a
fazer com que o cinema australiano ficasse conhecido do grande público, mas
principalmente trouxe uma visão positiva do mundo gay. Após a pesada década dos
anos 80, com o surgimento da AIDS e a vinculação desta doença aos homossexuais
(conhecida na época como o “Câncer Gay”), o filme serviu para revelar
um novo olhar para esta comunidade.
O musical, que surgiu também na Austrália (e
depois foi montado na Nova Zelândia, Londres, Canadá, Nova York e Itália,
respectivamente) também tem este mérito. Ele faz com que a plateia ria, se
emocione, torça e nem se lembre da orientação sexual dos personagens e sim dos
seres humanos que ali estiveram contando suas histórias.
Mas a montagem para os palcos também traz algumas
diferenças: no musical, talvez por causa da linguagem, pelos cenários
megacoloridos, ou mesmo por opção da direção, não temos o clima árido que há no
filme. Nas telas, as cenas paradas das três drags perdidas no deserto,
alternam-se com momentos de explosão e cores das três ‘montadas’ se
apresentando. Isso não acontece no palco. A impressão que dá é que no musical
tudo ficou mais leve. Um exemplo muito claro disso é quando os moradores de uma
cidade picham o ônibus para ofender as três. No filme eles escrevem: ‘AIDS
fuckers go home!’ (algo como ‘Aidéticos putos, caiam fora!’), sendo que no
musical aparece apenas ‘Fodam-se bichonas!’.
Outra grande diferença – e uma belíssima sacada –
é que no musical a história toda é guiada por três Divas
(Priscila Borges, Livia Graciano e
Simone Gutierrez) que interpretam e representam as grandes
divas da música pop. Todos as músicas dos shows das drags, ou mesmo as músicas
que servem para nos trasportar de uma cena a outra, são cantadas por elas.
Impossível não se empolgar com a abertura do espetáculo, It´s Rainning
Men, e com I Will Survive, interpretadas com garra na linda voz de
Priscila Borges. Ou não se embalar com o negritude de Lívia Graciano, que com
sua belíssima voz brinca com enorme facilidade em I Say a Little
Prayer. Já Simone Gutierrez está ótima ao cantar a primeira parte de
Material Girl (dublada por Felícia no palco), mas destoa um
pouco das outras divas quando canta Girls Just Wanna have
Fun (Cindy Lauper). E por falar em música, nenhuma das
músicas do grupo ABBA que aparecem no filme estão no musical (pois elas fazem
parte de outro musical, o Mamma Mia!). Mas não se preocupe: outros hits
estão lá, e vão fazer você querer levantar da cadeira.
Não podemos deixar de citar também alguns
pequenos personagens, mas mesmo assim marcantes, que aparecem na história:
Leandro Luna abre o espetáculo com a sua hilariante e
eletrizante Miss Segura, e surpreende com a sua imitação perfeita de
Tina Turner e seu ágil senso de humor. Andrezza
Massei está irreconhecível e divertidíssima como Shirley, uma
‘caipirona-meio-masculina’ do interior australiano, e Lissah
Martins também arranca grandes gargalhadas do público com sua hilária
Cynthia, filipina expert em pompoarismo
e mulher de Bob (Saulo Vasconcelos). Saulo
também marca presença neste musical como o delicado Bob, um mecânico
que se encanta por Bernadette.
No entanto existem dois pontos que merecem a
nossa refelxão: a dramaturgia do musical e sua adaptação brasileira. O público
no Brasil já está acostumado a ver nos palcos os famosos musicais traduzidos
para o português, afinal de contas as músicas acabam sendo textos-cantados, e
fazem parte da cena. Mas no caso de Priscilla isso nem sempre acontece.
As músicas que são cantadas pelas divas e dubladas pelas drags são cantadas em
inglês e tudo bem, fazem parte dos shows. Mas não deixa de ser estranho e, de
certa forma, elitista quando um dos personagens canta no meio da cena e muitas
vezes começa em português e logo a música volta para o inglês, fazendo com que
muitos na plateia percam o que ele está dizendo. Podemos ver isso várias vezes
no espetáculo. Um exemplo é quando o personagem de Luciano Andrey canta I
Say a Little Prayer: ele está lembrando de seu filho Benji e canta
(em português) que toda manhã acorda e, antes de se arrumar, faz uma oração para
seu filho; mas quando entra o refrão (‘Forever and ever, you´ll stay in my heart
and I Will Love You’) ele canta em inglês e pode ser que nem todas as pessoas
que estão assistindo entendam. Isto também acontece quando Bernadette
vem mostrar um gesto de carinho por Mitzi e canta True Colors.
E o texto se perde.
A dramaturgia do musical vai bem até metade do
segundo ato, mas enfraquece no final. Diferentemente do filme, não fica muito
claro que as três sobem “montadas” nas montanhas para realizar um sonho – e não
ficamos sabendo o que acontece com cada uma delas depois dali.
Mas tudo isso são detalhes perto deste
espetáculo, e perto das incríveis atuações de Andrey, Gabira e Torquato. Gabira
está maravilhoso como Bernadette, a transexual que não se conforma em
como as drags atuais preferem cantar com sua própria voz e estão se esquecendo
da arte da dublagem. Ele imprime muita delicadeza a sua Bernadette, e
nos faz esquecer, assim como Terence Stamp no filme, que seu
personagem já foi um homem; apesar da Bernadette de Stamp ser um pouco
mais amarga. André Torquato está divertido e lindo como Felícia, a drag
mais jovem – e diferentemente de Guy Pearce, sua
Felícia é um pouco menos ‘maldita’ e mais engraçada. A cena em que ele
apanha de um grupo de rapazes homofóbicos é um dos momentos altos do show. E por
último e não menos importante, Luciano Andrey está incrível como Mitzi.
Ele consegue, com delicadeza e com enorme controle de sua atuação, nos fazer
transitar por todas as emoções e coloridos que seu personagem vive, mostrando
como faz diferença termos bons atores fazendo musicais. Os três, incríveis.
Priscilla, Rainha do
Deserto é uma celebração à vida, à liberdade de expressão e é também
uma bandeira erguida à tolerância ao próximo. Duvido quem não se emocione ao ver
a simplicidade com que Benji, o filho de Mitzi, lida com a
situação de ter um pai homossexual. Assim como ele, Priscilla nos
mostra que todos somos lindos do jeito que somos, com nossas verdadeiras (e
únicas) cores.
ZIEG VEREDITO: Abra suas asas,
solte suas feras, caia na gandaia, entre nesta festa!
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