quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Processo Criativo

Entrevista de Thiago Xavier com Saulo Vasconcelos!


Todo o artista passa por um processo criativo com o objetivo de obter uma expressão de arte mais fiel a sua ideologia de perfeição. Sendo assim, cada artista cria seu próprio método de criação, mesmo que baseado em conceitos e ensinamento de outras pessoas.

O processo criativo pode ser denominado como o processo de vir a ser, isto é, criar significa dar origem, formar, gerar, produzir, inventar, imaginar. Esta criação resulta na obra de arte.




Thiago Xavier: A preparação e concepção de um personagem sempre exigem treino, ainda mais quando envolve a parte física (voz e expressões) e emocional (ator e personagem). Stravinsky diz que criação é 99% transpiração e 1% inspiração. Assim, como é a preparação técnica para o trabalho de um personagem?

Saulo Vasconcelos: Acredito muito em Stravinsky. Aliás, não sabia dessa opinião dele à respeito da arte em geral. Não acho que seja exatamente nessa proporção, porque querer "matematizar" algo tão subjetivo é até contraditório. Mas, por outro lado, acredito muito mais no trabalho, no estudo, na pesquisa, do que propriamente no talento. A preparação técnica não é diferente. Todos os dias, num processo de ensaio, se prima pela repetição e, através da repetição, o aprimoramento da personagem, bem como do espetáculo. Durante a temporada, já entrando numa nova fase, vem em primeiro lugar a manutenção do que foi estabelecido como "regra do jogo", vamos dizer assim. O que foi determinado no período de ensaios será referência pro resto da temporada, longa ou curta. E é isso que o ator tem que saber cumprir, tecnicamente. Óbvio que há dias em que a inspiração te leva à um outro nível, uma espécie de nirvana artístico, mas nem sempre a inspiração está lá. Então, é exatamente a "transpiração" que vai ajudar o ator a se manter vivo e com qualidade no espetáculo, principalmente num longo prazo.


Thiago: A busca de referências para construir um personagem faz parte do processo criativo, pois o ator precisa sentir e acreditar no que vive no palco para convencer o público que o assiste (o “SE mágico” de Constantin Stanislavski). Contudo alguns personagens, como Fantasma, Old Deutoronomy e Fera não têm muitas referências por não existirem na vida real. Como é feito esse processo de criar sem referências físicas?

Saulo: Discordo no caso do Fantasma. Lembremos que não se trata de uma personagem de fábulas, muito menos fantasioso. Existem até teorias de que ele realmente existiu. Mas a coisa já tomou uma proporção tão grande, que hoje em dia não se sabe mais o que é fantasia e o que é real. Sempre pensei nele como um ser humano, com uma deformação física aguda e traumatizante, extremamente obcecado por uma mulher. Não como um espírito ambulante que tem poderes paranormais. O texto mesmo diz isso. Suas habilidades como mágico, arquiteto, compositor, músico, davam a ilusão ao público de que ele tinha realmente poderes sobrenaturais ou pudesse ser um espírito, mas em momento nenhum eu o enxerguei dessa forma. No caso da Fera, a coisa era realmente um problema, porque eu não tinha referência real para conceber a personagem. Então eu mantive a essência das emoções no plano humano e busquei, no corpo, a "animalidade". Separei, isolei, esses dois aspectos importantíssimos pra um ator. O corpo também fala. E, ao saber que a maguiagem foi baseada numa mistura de leão com búfalo, procurei analisar esses dois animais, no zoológico e na TV, e encontrar em meu corpo a melhor forma de expressar isso em cena. No caso do Bom Deuteronomy, ensaiamos exaustivamente a parte física, com exercícios de improvisação felina de 30 minutos, antes de começar os ensaios das cenas. Isso ajudou muito o corpo a entrar nos moldes de um gato. Gatos não cantam, não andam em duas patas, não fazem coreografias, enfim, não fazem um monte de coisas que fazemos no palco. Mas é uma referência apenas. É a base do que será o jogo em cena. Feito esse trabalho, também me foi colocado que o Bom Deuteronomy era uma espécie de Buda dos gatos. Essa também foi mais uma referência interessante pra concepção final do que eu criei pra personagem.


Thiago: O maior medo do artista é cair na rotina. O coração de quem cria sempre procura novos desafios e novas formas de expressar toda sua arte, emoção e sentimentos. Alguns espetáculos ficam em cartaz por vários meses, ou seja, muitas apresentações seguidas e repetidas. Como fica o lado criativo de querer inovar sempre nessa situação?

Saulo: Inovar sempre pode ser um grande erro. Às vezes, o mais importante é manter as coisas simples. Entrar em cena pensando em inovar e ser genial, pode ser o primeiro sinal de não cumprimento de uma premissa básica do ator. Ser real, verdadeiro. Se o ator entra em cena com esse objetivo, tudo fica mais fácil. Ou menos difícil. Porque realmente, numa temporada de mais de 100 apresentações (existem casos de temporadas que duram 500, 600 apresentações), o maior desafio, pra mim, é se manter motivado e vivo em cena. Esse número impressionante de apresentações por semana, que podem vir a oito, como é o caso do Estados Unidos, e em algumas produções no Brasil, que chegam a sete por semana, tem um objetivo comercial. Quanto mais apresentações, mais dinheiro se arrecada com um determinado espetáculo, mais lucro pra empresa que o trouxe. Esse esquema massacrante cobra do ator o seu preço. Em espetáculos como CATS, A Bela e a Fera, Chicago, onde o corpo é mais exigido, não é incomum o surgimento de lesões físicas durante a temporada. Essas lesões podem bombardear a motivação de um artista em cena. Além, claro, do aspecto citado na pergunta. O surgimento de uma sensação de rotina. Realmente acredito que cada um tem sua forma de combater essa sensação. Pra mim a motivação de estar em cena vivo é o mais importante. Vivo, no sentido de elétrico, presente, "jogando" (cenicamente) com os companheiros em cena. Quando me sinto assim, sei que estou bem. Bem pra mim e bem pro espetáculo. E outra, a rotina não necessariamente é ruim. Rotina, no sentido de ritual, pode te ajudar muito a "entrar no clima" pra peça.


Thiago: Sempre que pode o artista aprimora sua obra. Hoje você é reconhecido como a maior referência do teatro musical brasileiro. O que acredita que precisa ser aprimorado em seu trabalho?

Saulo: Tudo! Meu corpo muda com os anos, minha voz, minhas experiências de vida (que contribuem em muito pra estar em cena com verdade). Eu não acredito em regras. Mas acredito que é uma tendência natural, do ser humano, em todos os aspectos, buscar a evolução, o crescimento. Existe sempre uma mudança interna e uma externa. E se aprimorar implica em conciliar esses dois aspectos. Entender o que está acontecendo internamente e depois olhar ao seu redor e se adaptar. Existem tendências de técnica vocal, de linguagem cênica, novas técnicas de dança. Mas existe existe também a sua mudança interna. O que você aprendeu durante anos. Aquilo que te torna único e especial.

4 comentários:

  1. Fantástica entrevista! Ótimas perguntas também. Nada mais importante do que saber que a inspiração que o Saulo é para os fãs, ele consegue através de outras inspirações, rotinas de 'rituais' e um sorriso no rosto, sempre!

    @vivianenobre

    ResponderExcluir
  2. Meu amigo Thiago!!!
    Que bacana... sei oquanto é fã de musicais e o quanto é fã do Saulo.
    Êhhhhhhhhhh... sucesso para os dois!
    @dicobarbosa

    ResponderExcluir
  3. Uma lição de profissionalismo!!!
    Ninguém é grande à toa.

    Excelente a entrevista. Me fez conhecer um pouco mais de todo o trabalho por trás das cenas.
    Obrigada
    Beijos

    @regina_arede

    ResponderExcluir
  4. ahhh, isso me da uma vontade absurda, de assistir um musical com Saulo Vasconcelos. Esse meu amigo Thiago é bom mesmo em Propaganda, hehehe

    ResponderExcluir